Sergio Cruz Lima
Padre Quelé
Em plena época imperial, antes da popularidade que aos bocados amealhou na cidade do Rio de Janeiro, o nosso aprendiz de padre chamava-se Claudino.
Pardo, magro, marrã, cambaio, de rosto comprido, ele andava sempre apressado e suspendia o passo como quem anda na lama ou na areia. Sem receber as quatro ordens menores, nosso herói ficou em prima tonsura, daí a barba rapada e coroa de minorista. Idiota de nascimento, excêntrico nos hábitos, erótico às ocultas, Claudino manifestava tendências hipócritas, religiosidades exageradas e costumes bizarros, tudo isso concorrentes à sua celebridade como tipo de rua.
Desde a sua iniciação no sacerdócio, Claudino sempre manifestou-se publicamente maníaco. Falava mal da vida alheia, tocava violão e cantava lundus em casas suspeitas, era avarento e andava sempre de batina, sapato de fivela, meia preta, barrete fechado na mão e capa magna, objetos que filava de monsenhor Narciso. Debaixo do braço trazia sempre um maço de velhos jornais, costume conservado até a morte, os quais lia quando cansava de andar, sentado no último degrau da escada de algum corredor. Aqui e ali, mas sem parar, roçava nos transeuntes, estendia sorrateiro a mão livre, e falava, também, rápido e baixinho: "Camaradinha, me dá um vintém!"
Imbecil e canhestro, no início de sua vida de clérigo, Claudino era infalível às ladainhas dos sábados na igreja de Nossa Senhora do Carmo. Todavia, sendo tatibitate e inhenho, acontecia que, em vez de pronunciar kyrie eleison, respondia, acompanhando a reza, Quelé. Desde então os moleques formaram-lhe na rua um estado-maior saltitante, atroador e festivo: "Ó Quelé! Ó Quelé!" E o Quelé corria, descompunha, soltava palavrões, não deixando jamais de pedinchar amedrontado, talvez assombrado: "Me dá um vintém, camaradinha?" E a resposta logo surgia: "Ó Quelé! Ó Camaradinha!... Ó Padre Quelé!...
Um dia, o delegado de polícia, Dr. Cunha, cansado das censuras e tretas do arupanado e patranheiro padre Quelé, resolve intervir. E manda brasa! Carola, proíbe-o de usar batina por vê-la tão desacatada. A reforma não pode ser mais radical. No dia seguinte, Quelé faz a sua entrada na cidade e nas ruas vestido de casaca, chapéu panaché, calça curta e larga, conservando apenas sapatos baixos, meia de seda, coroa aberta e sobraçando o indefectível maço de jornais. De chapéu na mão, sem relaxar o rigor do novo figurino, o Quelé afronta as vaias, as pedradas, as tempestades dos moleques pacholas e vadios: "Ó Quelé! Ó Camaradinha!"
No herói, conta-se, morreu em 1876. É o que dizem os jornais da época!
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